
Em ambientes corporativos onde metas, indicadores e gráficos de desempenho moldam decisões e reputações, é natural que a segurança do trabalho, pressionada por resultados e pela expectativa social de “ambiente seguro”, adote slogans como “acidente zero” como bandeiras estratégicas. À primeira vista, a proposta parece incontestável — afinal, quem seria contra a eliminação total dos acidentes?
Contudo, sob o verniz do discurso idealista, esconde-se um dilema real: a segurança não se sustenta em utopias absolutas, mas em processos contínuos, imperfeitos e essencialmente humanos. A ideia de “garantia do zero acidente” não apenas ignora a complexidade dos sistemas organizacionais, mas também minimiza a imprevisibilidade inerente ao fator humano, às variabilidades operacionais e aos contextos de trabalho reais.
Este artigo propõe uma reflexão técnica e ética: não existe garantia de acidente zero. Existe, sim, o compromisso consciente, cotidiano e inegociável de buscar ambientes mais seguros — não por imposição estatística, mas por convicção moral e responsabilidade coletiva.
1. O ideal do zero acidente: um conceito que exige maturidade para ser compreendido
Na literatura técnica, o conceito de “acidente zero” é frequentemente abordado como um valor organizacional aspiracional, e não como uma meta quantitativa com prazo e cobrança direta. Sidney Dekker (2012) e James Reason (1997), dois dos autores mais respeitados em cultura de segurança e sistemas organizacionais, alertam que perseguir o “acidente zero” como meta absoluta pode gerar um ambiente de silenciamento, subnotificação e medo de retaliações, comprometendo justamente o que deveria proteger: a integridade das pessoas.
Empresas maduras compreendem que acidentes, por definição, são eventos não planejados, e que nenhum sistema — por mais robusto, certificado ou automatizado que seja — é capaz de eliminar completamente as falhas latentes ou os desvios operacionais. A gestão de segurança, nesse sentido, precisa abandonar a ilusão de controle total e abraçar a complexidade, investindo em resiliência organizacional, aprendizagem contínua e diálogo transparente.
2. Segurança não é estado: é movimento, processo, construção diária
A segurança no trabalho não é um destino final, mas uma jornada contínua, cheia de imperfeições, revisões e recomeços. Não se trata de garantir que acidentes jamais ocorrerão, mas de criar as condições para que, quando eles acontecerem (ou quase acontecerem), sejamos capazes de entender suas causas profundas, aprender com elas e fortalecer o sistema para que não se repitam.
A norma ISO 45001:2018, que estrutura os sistemas de gestão de SST em nível internacional, reforça esse entendimento ao enfatizar melhoria contínua, participação ativa dos trabalhadores, identificação de perigos, e gestão de riscos baseada em evidências. Ela não promete um ambiente livre de acidentes, mas sim uma cultura organizacional voltada à prevenção e à resiliência.
É necessário dizer: a busca pela segurança é cansativa, exige vigilância constante, escuta ativa, revisão de processos e um pacto ético inabalável entre liderança e trabalhadores. E isso precisa ser assumido com seriedade.
3. Uma reflexão pessoal: e se fosse com alguém da sua família?
Mais do que uma métrica corporativa, a segurança no trabalho é uma questão de humanidade. A cada vez que negligenciamos uma análise de risco, aceleramos uma tarefa sob pressão ou banalizamos um desvio como algo “normal”, estamos escrevendo em silêncio a probabilidade do próximo acidente. Pode não ser hoje, talvez não amanhã, mas um sistema que não aprende está, inevitavelmente, caminhando para a falha.
Aqui cabe uma pergunta direta, sem rodeios:
Se fosse o seu irmão, sua filha, seu pai ou sua companheira trabalhando ali naquele posto, você aceitaria a justificativa de que “não dava tempo”, “não era tão perigoso assim” ou que “sempre foi feito desse jeito”?
Pensar segurança é, sobretudo, pensar em pessoas concretas, com histórias, planos, famílias — e não em estatísticas frias e metas trimestrais.
4. A ética da prevenção: mais do que técnica, é valor
Assumir que não existe garantia de acidente zero não significa desistir da prevenção. Pelo contrário. Significa ter maturidade e coragem para fazer da segurança uma prática ética, que reconhece os limites da técnica, a vulnerabilidade humana e a importância do aprendizado organizacional.
Significa entender que liderar pela segurança é mais do que cobrar EPI ou divulgar campanhas visuais — é construir confiança, escutar os trabalhadores, investigar os quase-acidentes com seriedade, e tomar decisões que priorizem a vida, mesmo quando isso contraria a lógica produtivista.
Significa, por fim, reconhecer que segurança não se impõe — se constrói. Não se declara — se vive. Não se terceiriza — se assume.
Conclusão: o desafio contínuo de fazer o certo quando ninguém está olhando
A busca por ambientes de trabalho mais seguros não pode ser reduzida a slogans de campanha ou KPIs corporativos. Trata-se de uma escolha ética e técnica, renovada todos os dias, em cada diálogo, em cada procedimento reavaliado, em cada trabalhador ouvido, em cada não-conformidade enfrentada com transparência.
Não existe garantia de zero acidente porque lidamos com pessoas, com variabilidade, com falhas. Mas existe, sim, a garantia de que quando uma organização assume, de fato, o compromisso com a segurança, ela deixa de tratar os acidentes como números e passa a tratá-los como rupturas inaceitáveis naquilo que deveria ser sua essência: proteger vidas.
Esse é o verdadeiro sentido da busca diária pela prevenção: uma prática imperfeita, mas necessária — humana, profunda e irrenunciável.